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dilema - Ana Fontana]
Na disciplina de ética do curso de especialização em enfermagem foi-me proposta a descrição de um incidente crítico que tivesse ocorrido durante o percurso profissional.
Reflecti sobre
comunicação da verdade ao doente, por ser uma situação com a qual me deparei no primeiro ano a cuidar de doentes oncológicos, e que quero aqui partilhar.
Pensei num jovem de 21 anos de idade, com diagnóstico de Linfoma não Hodgking e com prognóstico reservado devido ao seu estadio avançado.
Tentei saber qual a percepção que ele tinha da sua própria doença e a sua resposta foi
“estou aqui porque nos exames médicos da tropa detectaram-me uns caroços na barriga. O médico disse-me que se tratava de uma anemia muito avançada e que precisava ser tratada”. Não tinha noção da real gravidade do seu estado.
Seria justo não o informar da sua real situação? Se por um lado achava que ele tinha todo o direito a saber a verdade, para poder optar, ele próprio, pela sujeição ou não aos tratamentos ou por um período de vida possivelmente mais curto mas no seu ambiente natural no seio da sua família e dos seus amigos, por outro lado achava que o facto de se dizer a verdade era tirar-lhe a esperança de vida e ele era apenas um jovem de 21 anos que apesar de saber que tinha uma doença grave e que passaria por fases “menos boas” no decurso da sua doença tinha esperança de a tratar.
Teve internamentos prolongados devido aos efeitos secundários que decorriam dos vários ciclos de quimioterapia de altas doses. Entrava frequentemente em aplasia medular, com os consequentes efeitos que essa situação acarrectava.
Nunca fez perguntas em relação à evolução da sua situação clínica, aceitava todos os tratamentos passivamente por mais dolorosos que fossem. Apresentava constantemente um comportamento triste. Será que esse comportamento triste e de aceitação não seria uma entrega total à sua doença da qual já estava cansado e se sentia derrotado?
O seu estado foi-se agravando, a metastização pulmonar instalou-se e com ela a dificuldade respiratória e a debilidade física. Houve então necessidade de lhe colocar oxigénio e de ser alimentado por via parentérica.
Raramente tinha visitas por se encontrar a uma distância significativa da sua residência. Convictos da sua fase terminal, foi permitida a presença de um familiar as 24horas junto do doente ficando habitualmente a mãe ou a irmã.
Eu como enfermeira, mas essencialmente como ser humano, sentia demasiado o sofrimento deste doente talvez pelos seus longos e frequentes internamentos e pelas horas de cuidados a ele dedicados.
Considero que ele pressentiu a sua morte pois no mesmo dia, no turno da tarde, tocou a campainha intermitentemente e apesar da sua dificuldade na articulação das palavras disse
“Exijo a presença da minha médica e da enfermeira chefe aqui”. Expliquei-lhe que nenhuma delas se encontrava ao serviço e perguntei-lhe se eu não podia ajudar. Ele respondeu
“Eu vou morrer. A minha mãe está só para aqui a chorar é porque eu tenho uma doença grave e quero saber qual é”. Fiquei perplexa, a sua afirmação de morte tão convicta e a vontade de saber qual a sua verdadeira doença deixou-me em vários dilemas: tem o direito de saber qual a sua verdadeira patologia mas devo se eu a comunicar-lhe? Será justo dizer-lhe a verdade agora que está na sua fase terminal quando houve tanta oportunidade de lhe ser dita antes? Não será melhor ficar na dúvida do que saber que foi enganado todo este tempo?
Só consegui responder
“a tua mãe está só para aqui a chorar porque não há nenhuma mãe que consiga ver um filho doente nem que seja com uma simples febre”. Não insistiu com a conversa.
Chamei a mãe à parte e pedi-lhe para evitar chorar ao pé do filho ao que ela respondeu com as lágrimas nos olhos
“não é fácil ver o sofrimento de um filho”. As minhas lágrimas começaram a querer surgir e eu só consegui agarrar as mãos da senhora momentaneamente e virei costas.
Que enfermeira era eu que nem apoio conseguia dar aquela mãe naquele momento? Tinha plena consciência que se continuasse ali acabava por chorar com ela e não ficava bem a uma enfermeira chorar. Muitas vezes cheguei a indagar-me se teria perfil para trabalhar neste tipo de serviço chegando até a desejar sair para outro emocionalmente mais leve.
Nessa mesma tarde, volta a tocar a campainha de forma intermitente. Aproximei-me, olhou para mim, com ar passivo, agarrou na minha mão e na mão da mãe e começou a entrar em inconsciência. Apercebendo-me que estava a morrer pedi à mãe que se retirasse, ela respondeu sem nenhuma lágrima e cheia de convicção
“o meu filho está a morrer e eu quero estar ao pé dele neste momento”. Onde é que aquela mãe foi arranjar tanta força? Só tive que respeitar a sua vontade.
Desta vez os meus olhos encheram-se de lágrimas, não consegui evitar.
Muitas vezes perguntei a mim mesma se eu tivesse mais experiência a cuidar destes doentes a reacção seria a mesma, se não reagiria de forma menos sentimentalista e se não lhe teria dito a verdade. Era o primeiro ano que estava a lidar com este tipo de doentes no entanto já tenho uma experiência de 11 anos e continuo a achar que reagiria da mesma maneira e continuo a sensibilizar-me perante algumas situações.